Em condições normais, um
político que é o mais impopular a ocupar seu cargo em 30 anos,
esperaria o fim do mandato para deixar a vida pública discretamente e não
prejudicar ainda mais sua biografia. Se essa figura precisasse de foro
privilegiado para fugir da cadeia seria razoável supor, no entanto, que ela
lutasse para se manter viva politicamente. Este é o caso de Michel Temer.
Uma leitura
atenta do noticiário somada a fatos recentes deixa evidente que a intervenção federal no Rio de Janeiro não
passa de uma tentativa de Temer sobreviver politicamente.
Lembremos dos fatos, a
começar pela situação jurídica de Temer. Em agosto e setembro de 2017, a Câmara salvou o presidente, ao determinar que
ele não deveria ser julgado pelas denúncias de corrupção passiva, obstrução de
justiça e formação de quadrilha feitas pela Procuradoria-Geral da República
(PGR).
Tratou-se de um adiamento.
Assim que Temer perder o foro privilegiado que a presidência lhe confere (e não
obter nenhum outro), estará à mercê da 10ª Vara Federal de Brasília. A julgar
pelo ativismo da primeira instância do Judiciário inspirada por Sergio Moro,
Temer não deve ter vida fácil. Seu ex-assessor, Rodrigo Rocha Loures, se tornou réu em
dezembro. Apontado pelo presidente como "homem de confiança" em diálogo com
Joesley Batista, da JBS, Loures foi flagrado correndo pelas ruas de São Paulo
com 500 mil reais em propina, originários da JBS.
Há ainda o inquérito do Porto de Santos, por enquanto aos cuidados da Polícia
Federal.
Oficialmente, a
justificativa de muitos deputados para salvar Temer foi a economia - o
presidente estava tocando reformas essenciais que colocariam termo à
recessão. Outro argumento corrente era a tese de que Temer seria julgado
pela primeira instância após o fim de seu mandato. Assim, o Congresso não
estaria absolvendo o presidente, mas adiando seu julgamento em nome da
economia.
O discurso de
"homem do mercado" foi incorporado por Temer desde que assumiu o Planalto.
Era sua estratégia de curto prazo para não ser derrubado. Serviu para dar
proteção a ele diante de duas forças magníficas da política brasileira, a
grande imprensa e o mercado, cujos interesses coincidem. Assim, Temer trocou o
comando da Polícia Federal e da PGR por figuras que parecem ter, no mínimo, a
intenção de não incomodá-lo, e, no limite, caso da PF, de protegê-lo.
A estratégia de
longo prazo de Temer para se livrar da Justiça era garantir o foro privilegiado
a partir de 1º de janeiro de 2019. Em novembro, o jornal O Globo publicou
reportagem segundo a qual aliados de Temer estariam cogitando a ideia de o
presidente virar embaixador, cargo que dá direito a foro privilegiado. Faltaria
combinar com o presidente eleito.
No
domingo 18, a Coluna do Estadão noticiou que
o MDB, partido de Temer, esperava uma sinalização de Geraldo Alckmin de que
poderia nomear Temer para seu ministério em troca de apoio ao PSDB em outubro.
Como o sinal não veio, a candidatura própria de Temer ganhou força. É aqui que
entra o Rio de Janeiro.
A
intervenção federal foi anunciada em um momento no qual estava nítido que o
governo não conseguiria levar à frente a reforma da Previdência. A mudança no
INSS era a aposta do Planalto para marcar o presidente como "reformista" e
"modernizador". O tema era prioridade - antes do Carnaval, Temer fez um périplo
por programas populares de teve para divulgar a versão de que as mudanças
tinham como objetivo o corte de privilégios. O ímpeto torna razoável supor que,
na ausência de uma garantia de foro privilegiado, Temer alterou sua estratégia
de longo prazo - para se proteger, tentou aumentar sua popularidade e se tornar
viável eleitoralmente. Naufragada a Previdência, era preciso outro carro-chefe
para conseguir esse objetivo.
A escolha do
Planalto recaiu, então, sobre a segurança pública, a pauta do deputado Jair Bolsonaro, líder das
pesquisas presidenciais no cenário mais provável atualmente, aquele sem o
ex-presidente Lula na urna. É uma opção inteligente.
O apoio da imprensa e do
mercado foi fundamental para Temer se proteger até aqui, mas esses setores têm
uma variável fora de seu controle, o voto. O Brasil é recordista de homicídios
e a questão da violência é de crescente importância para os eleitores. Como
mostrou reportagem do jornal Valor
Econômico de segunda-feira 19, pesquisas recentes do Datafolha
e do Ibope deixam claro como são grandes a preocupação dos brasileiros com a
violência e a insatisfação com as políticas públicas para o setor.
Acoplada à
intervenção no Rio, vem a criação do Ministério da Segurança Pública.
Nas redes sociais, o Planalto adotou tom de campanha para divulgar a medida. "A
intervenção federal no Rio de Janeiro vai combater a violência no Estado. Mas a
preocupação com a segurança do brasileiro não para por aí. A população não pode
mais ficar refém do crime", diz o governo.
Cabe frisar também que a
intervenção federal é nitidamente picareta. Não houve planejamento algum antes
do anúncio da medida, que nem o interventor, o general Walter Souza Braga
Netto, tinha conhecimento. O oficial foi tirado de suas férias e levado do Rio
de Janeiro para Brasília às pressas e, em frente à imprensa na sexta-feira 16,
disse não ter nada a adiantar aos jornalistas sobre a
intervenção.
Soma-se ao
patente uso político do Exército o fato de que a eventual militarização da
guerra às drogas pouco fará para remediar o problema do Rio. Especialistas em
segurança pública são praticamente unânimes em destacar que seria mais efetivo
apostar em operações de inteligência e atacar a economia do tráfico, bem como
suas alianças com poderosos, inclusive na política. Além disso, a intervenção
vai durar até 31 de dezembro, tempo exíguo para resolver um problema de
décadas.
A fanfarra do anúncio da
intervenção cumpriu o primeiro ato da teatralidade de Temer, para usar o termo
da socióloga Jaqueline Muniz. O segundo ato da coreografia eleitoral pode ser
tétrico. O governo cogita lutar na Justiça para autorizar buscas coletivas em
favelas cariocas. Se der frutos, o noticiário estará recheado de filmagens
aéreas de tropas invadindo casas e combatendo traficantes. O ufanismo será
grande e a popularidade de Temer deve crescer. Os óbvios abusos que ocorrerão
nessas operações, a maioria contra inocentes e pobre, só serão conhecidos dias
depois, e o grosso da sociedade não vai se importar, como de costume.
Em público, o
governo nega que a medida seja eleitoreira. "Não houve, por parte de nenhum
membro do governo, outro interesse senão servir o Brasil e o povo", disse o
ministro Moreira Franco na terça-feira 20 à Folha de S.Paulo. Nos bastidores, a conversa
é outra. Como mostrou o site Poder360,
o Planalto pediu aos ministérios informações sobre as 10 principais
"realizações" de cada pasta. O objetivo é ajudar Temer em entrevistas pelos
Estados, uma agenda de candidato que deve ter início em breve. Na quarta-feira
21, o marqueteiro de Temer, Elsinho Mouco, rasgou a fantasia. "Ele já é
candidato", afirmou ao jornal O
Globo. Constrangido, o presidente soltou nota dizendo que não há
"significação eleitoral" na medida.
Colocada a intervenção, a expectativa é sobre o seu alcance. A
Câmara e o Senado aprovaram o decreto com apoio maciço - 340 deputados e 55 senadores votaram a
favor do texto, número suficientes para alterar a Constituição. Durante a
sessão, inúmeros parlamentares pediram outras intervenções federais como a do
Rio, inclusive em estados que tiveram operações de Garantia de Lei e Ordem
(GLO), prenunciando um cenário de múltiplas ações militarizadas meses antes de
uma eleição geral. Falta saber até onde o governo está disposto a ir para
"servir o Brasil e o povo".